A Biblioteca
Desde 1836.
«É a Passos Manuel e aos decretos promulgados pela Rainha D. Maria II em 25 de Outubro de 1836 que a Academia deve a sua existência, reformada, todavia, por sucessivos governos, nomeadamente em 1881 (quando se decide separar as duas instituições – Academia e Escola), em 1901 e finalmente em 1911, pelo decreto de 26 de Maio que, ao criar os Conselhos de Arte e Arqueologia e para eles passar praticamente todas as competências da Academia, na verdade a extinguiu sem o fazer expressamente. Todavia, a falta de rigor na redacção deste decreto tem dado origem às mais variadas interpretações. Posteriormente foi a Academia restaurada? Recriada? Reestruturada? Ressurgida? Ou revitalizada? (1) O que temos por certo é que “entre os anos de 1911 e 1932, não houve em Portugal, com o nome de Academia, qualquer instituição pública na área das Belas Artes” (2). Entretanto, dos três decretos que Manuel da Silva Passos apresenta à Rainha, se o primeiro se destinou à criação da Academia das Bellas Artes de Lisboa e à entrega dos respectivos Estatutos, os restantes promoviam a criação de uma Biblioteca especial de Bellas Artes, integrada naquela, para servir especialmente aos académicos e aos alunos da escola que iria funcionar na dependência da Academia (3).
A Biblioteca já não é mais e apenas uma peça acessória da Academia, constituída por alguns daqueles livros, cerca de dois mil, saídos da montanha existente no Depósito Geral, instalado também num espaço do extinto Convento de S. Francisco da Cidade, “e que mais úteis (fossem) para a cultura e aperfeiçoamento das Belas Artes” (4), como determinava o decreto fundador. Agora, estes Estatutos, com a Biblioteca já instituição de leitura pública, evidenciam que ela deve ser mantida e actualizada “de forma a completar os núcleos bibliográficos existentes e a criar novos núcleos” (5).
O enriquecimento da Biblioteca iniciou-se relativamente cedo. Com a extinção, consequente da criação da Academia e respectiva Escola (6), das várias Aulas existentes na época – de Escultura, de Arquitectura Civil, de Desenho de Figura, de Gravura, e ainda da Casa do Risco -, todos os livros que lhes pertenciam e formavam pequenas ou maiores livrarias foram confluindo na Biblioteca da Academia. (…) Igualmente, começou a Biblioteca a receber ofertas, maiores ou menores, de particulares, académicos ou cidadãos interessados: Cyrillo Wolkmar Machado, por morte, mandou entregar toda a sua livraria à Biblioteca e o mesmo terá feito o seu colega e amigo Pedro Alexandrino; de Machado de Castro entraram nos acervos livros, plantas e desenhos; de António Francisco Rosa, último mestre da Casa do Risco, a sua biblioteca pessoal; ofertas também do ministro plenipotenciário da Prússia, conde Athanasius Rachzinski, do diplomata e conselheiro Jorge Hudson da Câmara, do 2º conde de Lavradio, do marquês de Sousa Holstein e, em 1863, uma importante doação do rei D. Luís. (…)
Olhada a mais de um século de distância, a Biblioteca nunca dispôs de meios financeiros suficientes sequer para preencher o quadro de pessoal que lhe fora atribuído desde o século XIX. Foi beneficiada, em 1934, com a sua inclusão na relação das instituições beneficiárias do instituto do Depósito Legal, mas até deste benefício, realmente importante, os dirigentes da Academia prescindiram, alegando falta de espaço.
E assim, com o passar do tempo e dos anos sucessivos, sempre com meios financeiros muito escassos e os interesses das várias gerações de académicos pouco voltados para uma vida académica intensa, tudo se foi degradando. O clímax da degradação foi atingido, tinha a Biblioteca então um único funcionário, (Técnico Superior, a quem competia naturalmente velar pela segurança, conservação e boa manutenção das espécies à sua guarda), quando a Direcção da Academia se deu conta que esse funcionário cozinhava as suas refeições dentro da sala grande da Biblioteca, usando um fogão a petróleo de lume vivo, provavelmente ao lado (quando não em cima) de algum volume setecentista de Vignola ou de Alberti, ou mesmo do Compromisso da Irmandade de S. Lucas que ostenta a data de 1607.
Decisão inevitável: encerramento total da Biblioteca até se encontrarem soluções capazes para tão absurda situação.
Estávamos em 1992. Decisão obviamente acertada, mas fechar é sempre possível; conseguir uma solução não o é tanto, e assim aqueles milhares de livros (e não só) ficaram encerrados naquelas paredes nem sempre convenientes, durante pelo menos duas décadas, criando lixo e miasmas, independentemente de uma ou outra tentativa individual, ora chamando a atenção para o problema, ora tentando mesmo ajudar a uma eventual solução.
A Direcção da Academia empossada em 2014 incluía, entre as suas primeiras preocupações, resolver o aparentemente interminável caso da Biblioteca (e também cuidar do importante acervo de pintura e escultura, igualmente de há muito entregue a si próprio, sem qualquer cuidado que se pudesse verificar).
A primeira decisão que coube tomar foi a de dividir a biblioteca em duas grandes partes, para tornar mais fácil o manuseamento e indispensável organização daquele acervo bibliográfico que, no total, deve actualmente atingir cerca de 40.000 livros.
Foi assim decidido criar, com aproximadamente 12.000 exemplares datados até aos começos do século XIX, o que desde agora se chama “Biblioteca Histórica”. Os frades, aquando da reconstrução do Convento após o Terramoto de 1755, tinham criado uma bonita e cuidada zona para a sua biblioteca, consistindo num amplo salão, um largo corredor de acesso e mais quatro pequenas salas, todo o espaço revestido de estantes numeradas com letras, que claramente tinham tido por fim guardar os livros conventuais. Por coincidência, os volumes que haviam de constituir a Biblioteca Histórica preenchem razoavelmente aquele espaço, onde, portanto, não entrarão mais livros (apenas exepcionalmente algum que seja necessário para completar uma obra ou uma série que esteja incompleta) e donde também não sairão. Histórica, neste caso, quererá dizer “fechada”, com um catálogo cuidado (7) e todos os títulos digitalizados e classificados, de modo a eventualmente poder fazer parte da Porbase. Está-se a trabalhar nesta parte de biblioteca desde o ano de 2014, beneficiando de mecenatos que foi possível obter e de ajudas, financeiras ou outras, nomeadamente da Fundação Gulbenkian e da Secretaria de Estado da Cultura.
A Biblioteca Histórica dispõe já de um regulamento, aprovado oportunamente em sessão da Academia, e de um horário de funcionamento para permitir o acesso a leitores devidamente credenciados. Prevê-se ter os trabalhos em curso concluídos no decurso de 2017.
A Biblioteca Contemporânea irá ser tratada com todo o cuidado que o seu acervo merece, pela sua qualidade e quantidade. Ainda é cedo para prognosticar quando essa tarefa decorrerá e se concluirá. O que sabemos é que, ninguém, na Academia, tem hoje qualquer dúvida sobre sua importância e que essa obra terá de ser realizada.»*
Doutor Fernando Guedes (1929-2016)
Académico Efectivo, Director da Biblioteca da Academia
(1) Carlos Antero Ferreira in Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 2009.
(2) Carlos Antero Ferreira, idem.
(3) Da leitura do Artigo 2º dos Estatutos verifica-se que o “objecto imediato da Academia” é a Escola e muito pouco mais. Ter-se-á de esperar algumas dezenas de anos para que esta situação se modifique.
(4) Do Art. 2º do decreto de 25 de Outubro de 1836 que funda a Biblioteca.
(5) Alínea i do Art. 2º dos Estatutos de 1978.
(6) Artigos 1º e 4º do decreto fundador da Academia.
(7) Os únicos apoios existentes são várias tentativas de organização de catálogos ao longo dos anos, mas nada do que existe actualmente pode ser de grande ajuda.
*Texto retirado do artigo «A Biblioteca da Academia» em Natália Correia Guedes (Coord.), Belas Artes da Academia: uma colecção desconhecida, Lisboa: Ministério da Cultura, Academia Nacional de Belas Artes, 2016.
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